O HOMEM QUE FAZIA CHOVER (Uma abordagem própria)




RESUMO

O filme, em seu intróito, de forma abreviada, apresenta um resumo da infância e juventude do advogado, Rudy Baylor, na qual seu pai era alcoólatra, espancava a sua mãe e afirmava odiar advogados, conseqüentemente, não aceitava a profissão que seu filho almejava.
Entretanto, Rudy Baylor decidiu a sua carreira se espelhando nos exemplos dos antigos advogados civis nortes-americanos. Assim, depois de anos estudando e trabalhando, ante a necessidade de se sustentar e pagar as despesas de seu curso, após se formar, tem sua primeira experiência em um escritório de advocacia, escritório de um tal de “Valentão”.
Munido de três causas que havia conseguido, ainda em seu tempo de estudante, percebe que a forma que advogados atuavam para conseguir seus clientes era totalmente diferente de sua concepção ética. Práticas essas que vão se apresentando ao longo do filme, como por exemplo, anunciar os serviços de advocacia, oferecendo balas junto ao seu cartão pessoal, em uma abordagem incisiva.
Em um determinado momento do filme, estando Rudy em um hospital captando clientes, conhece uma garota, a qual, após se apaixona vindo a saber que o marido da garota a violentava constantemente, deixando-lhe marcas corporais, como depois constatou.
No decorrer o casal acaba junto, a partir do momento em que Rudy tenta defendê-la de seu marido, o que tem conseqüências trágicas com a morte do mesmo em uma situação de enfrentamento, prisão e liberdade da jovem sob a escusa de legítima defesa.
Em outro momento, por conta de uma das suas três causas, conhece uma senhora que quer contemplar em seu testamento um pastor televisivo. Acaba alugando o imóvel dessa senhora, e vem a saber, no decorrer da narrativa, que a mesma era explorada pelos filhos, em uma sequência em que induz um dos filhos a tratá-la bem, a fim de ver garantido os seus direito no testamento.
Logo após uma seqüência de escândalos que envolvia o escritório para o qual prestava serviços, decide, junto com um seu companheiro de escritório, um bacharel em Direito, Deck Schifflet, abrirem seu próprio escritório.
Assim, como primeira causa, os dois passam a defender uma família de pessoas humildes que pagaram a uma empresa de seguros todas as taxas pedidas e quando tiveram a necessidade de acioná-la, para pagar uma operação de transplante de medula óssea para seu filho, portador de leucemia, fora-lhes negado o seu direito ao seguro de saúde.
Por conta dessa negativa, ante a impossibilidade de custearem o tratamento de seu filho, passaram a assistir a progressiva piora de seu estado de saúde, até a sua morte, fatídica.
Como desfecho, depois de uma sequência de julgamentos, povoada por cenas de tribunais, oitiva de testemunhas, falhas de Rudy junto ao tribunal, expedientes de Deck, revertendo muitas vezes as derrotas, tentativas de acordo impingidas a fórceps, simulação de fatos, com testemunhas desmentido os advogados e dirigentes da empresa de seguros de saúde, os dois ganham a causa, o que parecia impossível, ante a quantidade de fatores positivos em favor da empresa, e os reveses que tiverem de suportar, ao longo do processo.
No entanto, a empresa decreta falência e não indeniza a família, muito menos o escritório.
Os mesmos, de sua parte, acabam não cobrando os honorários da família, e apesar da vitória, tem que fechar o escritório.
Ao fecho do filme, Rudy nos conta que irá deixar de praticar a advocacia, pelo por um tempo, ponderando sobre as vicissitudes dessa profissão, sob os valores éticos que construiu ao longo de seus estudos na universidade. 







ANÁLISE CRÍTICA SOBRE O FILME

O filme apresenta uma parte importante da vida de Rudy Baylor, da luta para conseguir terminar o curso de Direito até a sua iniciação na advocacia, após a dura passagem pela prova da OAB.
Depois, a desilusão que lhe retira, logo em seu primeiro caso, seu idealismo que lhe impulsionará no decorrer do curso, chegando, até mesmo, no final da narrativa, a se questionar se teria condições de continuar advogando.
Interessante pontuar as passagens do filme que retratam muito bem esse estado de coisas, a prática da captação de clientela, o interesse pelo valor monetário das causas, tão somente e preponderantemente, acima dos valores humanos que estão sob o julgo da opressão do sistema judiciário viciado e venal, que se pode constatar, em algumas cenas do filme.
Enfim, a cena do hospital, em que os advogados vão, assim como abutres, buscar rendimento econômico a partir da tragédia alheia, valendo-se de práticas abusivas, que se utilizam da situação de vulnerabilidade de uma pessoa exposta à dor e ao medo, é emblemática.
De nossa parte, o trabalho que pretendemos apresentar no curso, busca abordar o Direito Constitucional à Seguridade Social, tecendo considerações à sua concretização como pré-requisito à existência da dignidade da pessoa humana.
O cotejo entre as duas realidades se faz a partir da noção de que a temática abordada no filme tem como pano de fundo, a necessidade de se concretizar a dignidade humana, como único e derradeiro princípio da Justiça.
E tal temática nos é apresentada de um modo dramático, na indignidade a que uma família e seu filho são submetidos, por uma empresa que comercializa planos de saúde, utilizando-se de expedientes ilegais, para cobrir o tratamento adequado à doença apresentada por aquele jovem (transplante de medula, visto que possuía leucemia).
A par dessa injustiça, põe-se em xeque os sistema judiciário que não se mostra adequado a coibir tal prática, e que no caso, somente expôs à opinião pública tal prática, por uma série de exceções à regra que se verifica na prática das lides forenses, onde um Juiz negro originário dos movimentos dos direitos civis, um advogado iniciante e idealista subvertem a ordem natural de como as coisas são decididas nas corte judiciais.
De nossa parte pretendemos abordar a direito à seguridade social; evocando, para tanto, a sua natureza jurídica, a sua evolução e sua ligação umbilical com a justiça e uma igualdade material.
E nesse ponto ponderamos, que os direitos sociais com previsão no artigo 6º da Constituição Federal; tem como fulcro, nesse diploma, como preconiza o artigo 1º, inciso III, o princípio dignidade da pessoa humana. Fundamento do Estado Democrático de Direito brasileiro. E, para a efetivação desse preceito, o texto constitucional, em seu artigo 6º, elenca os direitos sociais, tais como: educação, saúde, trabalho, moradia, lazer, segurança, previdência social, proteção à maternidade e à infância, além de assistência aos desamparados.
Tal construção é resultado de uma doutrina que tem como aporte a fase do Direito Constitucional da cidadania, que em seu bojo abarca as fases anteriores, que tiveram como objeto, de uma maneira evolutiva, os direitos civis, econômicos e sociais[1]
A seguridade social, em uma análise mais próxima, foi definida no artigo 194 da Constituição Federal, nos seguintes termos: “um conjunto integrado de ações de iniciativa dos Poderes Públicos e da sociedade, destinadas a assegurar o direito à saúde, à previdência e à assistência social”.
Os direitos compreendidos na Seguridade Social integram o catálogo de direitos e garantias fundamentais da Constituição de 1988, os quais não estão ao alcance do poder constituinte reformador, por expressa determinação do art. 60, § 4º, da Constituição Federal, segundo posição doutrinária referendada por J.J. Gomes Canotilho[2], da seguinte forma:

O conceito de “constituição social” servirá aqui para designar o conjunto de direitos e princípios de natureza social, formalmente plasmados na Constituição. Ao contrário do que acontece na maior parte das constituições, esta “constituição social” não se reduz a um conceito extraconstitucional, a um “dado constituído”, sociologicamente relevante; é um amplo superconceito que engloba os princípios fundamentais daquele a que vulgarmente se chama “direito social”..

Qualquer modelo de proteção social, e, sobretudo, os modernos sistemas de seguridade social, tem por finalidade propiciar ao indivíduo a superação de um estado de necessidade social gerado por uma contingência social, ou risco social.
Nesse sentido, tem-se que um dos debates mais associados ao constitucionalismo presente é a consagração plena dos direitos sociais, no sentido de configurarem direitos de segunda geração, correspondendo a prestações positivas, sensivelmente exigíveis conforme a vontade constitucional que lhes é ínsita.
Desse modo, a questão recorrentemente travada na doutrina e jurisprudência liga-se à aferição da aplicabilidade dos direitos sociais, enquanto normas constitucionais desprovidas de eficácia plena e auto-executoriedade, mas sobejamente exigíveis, eis que perfilam a própria ideologia do Texto Fundamental de 1988, considerando, notadamente, o disposto no artigo 3º, I, da Constituição Federal.
Essa linha de pensamento tem como núcleo a busca da efetividade da Constituição, de modo a que se tenha, em sua integralidade, a concretização dos princípios constitucionais, que agasalham os direitos fundamentais, fulcrados na dignidade da pessoa humana.
Nesse sentido, apesar da afirmação categórica quanto à existência de um direito constitucional à seguridade social, o presente trabalho lança mão de algumas ponderações relacionadas à amplitude do catálogo dos direitos fundamentais, de modo a englobar os direitos sociais, tecendo, a partir desse ponto, argumentos favoráveis à imprescindibilidade de tal concepção.
Para tanto, conceitos como “Reserva do Possível” e “Mínimo Existencial” são necessariamente referidos tendo como ponto de fuga a abordagem axiológica do texto Constitucional, a partir de conceitos emanados das concepções teóricas denominadas de Neoconstitucionalismo e Pós-positivismo, signos da pós-modernidade, os quais, e um reducionismo imediato, propõem um diálogo entre a Ciência Jurídica e a Ética.
Nesse ponto, acreditamos que existe uma correlação próxima com a temática discorrida no referido filme.
Um primeiro aspecto logo se apresenta, qual seja, a necessidade de se garantir os direitos de segunda dimensão, como pré-requisito a uma igualdade material entre as pessoas humanas que compõem o elemento subjetivo do Estado.
Qual seja a seguridade social, qual seja a saúde – como enfocado no filme -, fato é que sem a efetiva existência desses direitos, os quais somente poderão existir a partir da ação estatal, promovendo-os, diretamente, ou por delegação, não há como se cogitar em dignidade da pessoa humana.
A crítica à concepção estatal que preconiza a gradativa supressão dos direitos sociais, a partir da redução do papel estatal na economia, ante o contingenciamento orçamentário, e o paradigma de Estado Gerencial, é uma constante que se mostra no nosso trabalho, e que se revela, na tela, como pano de fundo do drama vivido pelos pais do garoto morto em virtude preponderância absoluta do poder econômico sobre o vácuo político do Estado ausente.
É uma temática que se insere nas discussões propostas por Lenio Luiz Streck, quando ele vaticina, citando Boaventura Santos[3], que:

Por isso, conclui, não é possível, agora, organizar politicamente a miséria e a exclusão, produzidas de modo desorganizado e desigual tanto globalmente quanto nos contextos nacionais: “Nunca os incluídos estiveram tão incluídos e os excluídos, tão excluídos”

A temática ainda aventa uma visão pós-moderna fundada em um liberalismo tardio; a qual provoca uma reflexão que se contraponha a esse conjunto de concepções tão injustas; tão perversas. Ponderações, essas, que irão se assentar nos fundamentos justificativos do chamado Welfare State.
E nesse momento, enlevando por passagens memoráveis do filme; como por exemplo, o depoimento “Doney Ray”, observado por “Leo Henry Drumond e Associados”; os postulados dogmáticos defendidos por John Maynard Keynes e as considerações humanistas de Amartya Sem nunca fizeram tanto sentido, a partir da relação econômica do Estado provedor com a expansão das liberdades reais, usufruídas pelas pessoas; notadamente quanto ao aspecto da desigualdade na distribuição de liberdades substantivas e capacidades.
E mais, a temática de fundo do filme, toda a atmosfera ligada a juízes, advogados, jurisdicionados, amplas salas de julgamento, colunas romanas em prédios forenses, nos devota um profundo respeito pelo direito, circundado por uma náusea petrificante, a moda de Kafka; ligando conceitos como Estado Constitucional de Direito, dogmática de um constitucionalismo moderno, centralidade do Diploma Constitucional no ordenamento jurídico, com práticas de captação de clientela; perfil mercadológico da atividade advocatícia, magistrados venais e vendáveis; advogados desprezíveis como paradigmas de sucesso profissional.
No entanto, considerando esse pano de fundo, queremos buscar-se-á elementos dogmáticos que corroborem a força normativa da Constituição, a partir da noção de que todas as normas constitucionais são dotadas de supremacia jurídica, e, portanto, providas de eficácia jurídica, conformando, ao menos em alguma medida, a realidade.
Em suma, queremos investigar o “constitucionalismo do Estado Social”.
O nosso trabalho, assim como no filme, tem uma vertente que se origina do aspecto volúvel dos direitos sociais. Um cinismo que emana da mesquinha noção falsa de proteção. Seja por uma empresa operadora de um plano de saúde, seja pelo Estado, com suas promessas de bem-estar, assentadas sobre normas programáticas, que em muito, defende-se a sua eficácia negativa, muito longe de se pretender um instrumento eficaz apto a exigir prestações efetivas do Estado.
Em nosso trabalho pretendemos, portanto, lançar um olhar sobre a natureza jurídica das normas programáticas, essas, como referido, definidoras dos direitos sociais; evocando-se, nesse particular, entre outros, a doutrina clássica de José Afonso da Silva.
Em uma outra ponta, parece-nos que existe uma correlação entre o filme e o nosso trabalho, quando abordamos o tema adstrito ao chamado Protagonismo Judicial.
Nesse pormenor, considerando, em nosso tempo, o papel de preponderância ocupado pelo Poder Judiciário; notadamente na concretização dos direitos sociais, vem a lume as contradições e aspirações do juiz como destinatário da significação das normas jurídicas. Quanto subverte esse papel, substituindo a intenção legal por outras aspirações particulares, notadamente ditadas pelo poder econômico, trai a sua significação maior de buscar viabilizar a justiça, nos autos processuais submetidos à sua análise.
Finalmente, numa seara mais própria do direito da Seguridade Social, pretendemos evidenciar e conjugar os princípios constitucionais da Universalidade e Seletividade nas prestações previdenciárias e assistenciais; buscando, em uma real medida, alcançar um equilíbrio que salvaguarde a dignidade da pessoa humana; em uma dimensão eficacial mínima. Nesse último aspecto, evidencia-se, no filme, um confronto entre a ética, a partir da evidenciação da dignidade da pessoa humana; e o poder econômico, representado pela ética do capital.
E tal ponderação, nos remete ao nosso trabalho, em uma seara que toca em uma perspectiva nova do constitucionalismo, chamado de Neoconstitucionalismo, que propugna, entre outras postulações, pela redefinição do papel da Constituição.
Assim, exige-se do intérprete, que a partir de uma leitura moral, abandone o caráter retórico da Constituição, não se prestando, essa, mais, unicamente, como instrumento de limitação do poder político, mas que se alcance uma nova significação, alçando-a a uma dimensão dirigente; concebendo um diploma comprometido com as prestações materiais consagradas em seu teor. Derivando, daí, a importância do Poder Judiciário e a concepção do Protagonismo Judicial.
Ligado a esse momento do constitucionalismo, consagra-se, de outra parte, a figura do chamado Estado Democrático Social de Direito[4].
A par das considerações várias que se poderiam tecer sobre tal concepção de Estado, nesse momento, restringe-se a evidenciar o seu caráter prestacional, espelho da concepção de Estado Provedor.
E nesse aspecto, logo à vista surge o problema relacionado ao custeio das referidas prestações materiais.
Nesse viés, portanto, inserem-se os conceitos de “Reserva do Possível” e “Mínimo Existencial”.
O conceito de “Mínimo Existencial”, desse modo, liga-se ao princípio da dignidade da pessoa humana, o qual, na concepção de Jediael Galvão Miranda, constitui-se em princípio matriz, suporte moral dos direitos, como fundamento constitucional de maior envergadura; diretriz de todos os demais princípios constitucionais, considerando ser inerente à pessoa humana, com fundamento em valor moral que antecede à organização social e tem como destinatário o próprio homem[5].
Nesse sentido, o conceito de “Mínimo Existencial” está vinculado a uma noção elementar de prestações necessárias à sobrevivência com dignidade.
Portanto, a preocupação com o “Mínimo Existencial” exige a garantia de meios que satisfaçam as mínimas condições de vivência digna do indivíduo e de sua família.
E, nesse ponto, contrastando-se a essa idéia, insere-se o conceito de “Reserva do Possível”, ligado ao contingenciamento orçamentário, a partir de um dirigismo imposto pelo modelo econômico escolhido pelo Estado.
A partir desse paradigma, questiona-se se a atual situação brasileira permite a concretização dos direitos fundamentais em um patamar aceitável, visto a partir de uma ótica neoliberal[6].
Ana Paula de Barcellos, por exemplo, entende que para a efetivação do princípio da dignidade da pessoa humana para todas as pessoas, deve o Estado, primeiro, ofertar um mínimo social existencial, para, somente então, garantir que todas as pessoas tenham uma existência digna[7].
Nesse ponto, considerando que a implementação de políticas públicas está adstrita à reserva orçamentária, insere-se a temática da justiça distributiva a partir da visão de Ronald Dworkin, entre outros representantes da corrente filosófica do igualitarismo liberal, em contraponto às demais teorias de justiça (Chaïm Perelman, Alf Ross), apresentando um paradigma baseado no direito de igualdade de consideração e no direito de ser tratado como um igual[8].
Aliás, nesse ponto, Ronald Dworkin[9] é enfático ao ponderar que:

Podemos dar as costas à igualdade? Nenhum governo é legítimo a menos que demonstre igual consideração pelo destino de todos os cidadãos sobre os quais afirme seu domínio e aos quais reivindique fidelidade. A consideração igualitária é a virtude soberana da comunidade política – sem ela o governo não passa de tirania – e, quando as riquezas de nações muito prósperas, então sua igual consideração é suspeita, pois a distribuição das riquezas é produto de uma ordem jurídica: a riqueza do cidadão depende muito das leis promulgadas em sua comunidade – não só as leis que governam a propriedade, o roubo, os contratos e os delitos, mas suas leis de previdência social, fiscais, de direitos políticos, de regulamentação ambiental e de praticamente tudo o mais.

Desse modo, a partir da concepção de princípios como mandamentos de otimização, defendidas por Robert Alexy[10] quer se delinear um conceito de dignidade da pessoa humana, considerando a noção de “Mínimo Existencial” em contraponto à noção de “Reserva do Possível”, utilizando-se um paradigma crítico do igualitarismo liberal, considerando, por fim, os postulados hermenêuticos hauridos da doutrina de Humberto Ávila[11], sob um pano de fundo neoliberal, ponto de convergência com contexto em que o filme se desenvolve.






ESTUDO SOBRE A ÉTICA NO JUDICIÁRIO

1. INTRODUÇÃO

A Ética no Poder Judiciário é um assunto que revela meandros, os quais perpassam pela missão que lhe incumbe na República Brasileira.
Tem como alfa e ômega o vicejar da dignidade da pessoa humana, a partir de ações que se mostrem efetivas na concretização dos direitos fundamentais.
E nisso, a ritualística judiciária, com seus cânones empertigados; submersos em rotos métodos procedimentais, carece de significação maior; porque subverte sua razão de ser.
A temática da ética quando insulada em um mar de cinismo é detalhe que se quer esquecer; perdido entre as estatísticas numerárias de sentenças repetitivas e cifras astronômicas de honorários advocatícios.
Assim, a ética, em suma, revela-se na missão de salvaguardar a dignidade humana, que nos parece, rarefeita, restrita em ações vocacionadas, que emergindo de um substrato doutrinário, hoje se mostram no chamado protagonismo judicial.

2. A DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA COMO TELEOLOGIA CONSTITUCIONAL

Como paradigma informativo, a acepção que se pretende abordar de dignidade da pessoa humana deve ser colocada em uma perspectiva mais ampla possível, de forma a buscar sua essência em um espectro de direitos abrangente a todos os aspectos da personalidade humana. Nesse desiderato, Ingo Wolfgang Sarlet[12] ensina que:

Nesse contexto, costuma apontar-se corretamente para a circunstância de que o princípio da dignidade humana constitui uma categoria axiológica aberta, sendo inadequado conceituá-lo de maneira fixista, ainda mais quando se verifica que uma definição desta natureza não harmoniza com o pluralismo e a diversidade de valores que se manifestam nas sociedades democráticas contemporâneas. Há que se reconhecer, portanto, que também o conteúdo do conceito de dignidade da pessoa humana (a exemplo de inúmeros outros preceitos de contornos vagos e abertos) carece de uma delimitação pela práxis constitucional, tarefa que incumbe a todos os órgãos estatais.

Portanto, cingindo-se aos horizontes estreitos que delimitam esse arrazoado, cabe ao Estado a conformação e delimitação da dignidade da pessoa humana.
Lançando um pouco de luz nesse desiderato, evocam-se os ensinamentos de Ana Paula de Barcellos[13], a qual defende, em sua doutrina, a necessidade do Estado, em primeiro lugar, ofertar um mínimo social existencial, para, somente então, garantir que todas as pessoas tenham uma existência digna. Assim, segundo o seu entendimento, faz-se necessário o atendimento a um núcleo com um conteúdo básico.
Nesse sentido, assevera que:

Esse núcleo, no tocante aos elementos materiais da dignidade, é composto de um mínimo existencial, que consiste em um conjunto de prestações materiais mínimas sem as quais se poderá afirmar que o indivíduo se encontra em situação de indignidade.

Por conta dessa concepção, Ana Paula de Barcellos[14] inclui como integrantes desse “conteúdo básico”, os seguintes direitos: educação fundamental, saúde básica, assistência no caso de necessidade e o acesso à Justiça.
A partir desse postulado, agrega-se o teor do art. 5º, § 1º da Constituição Federal, o qual revela, em sua normatividade, a imposição aos Poderes Públicos de alicerçar a eficácia máxima e imediata aos direitos fundamentais.
Nesse sentido, manifesta-se Ingo Wolfgang Sarlet[15], nos seguintes termos:

Tal se justifica pelo fato de que, em nosso direito constitucional, o postulado da aplicabilidade imediata das normas de direitos fundamentais (art. 5. § 1º, da CF) pode ser compreendido como um mandado de otimização de sua eficácia, pelo menos no sentido de impor aos poderes públicos a aplicação imediata dos direitos fundamentais, outorgando-lhes, nos termo desta aplicabilidade, a maior eficácia possível.

Assim, é necessário evidenciar até que ponto podem os entes públicos deixar de efetivar a concreção das normas constitucionais que disciplinam os direitos sociais, sem que exista ofensa aos direitos subjetivos dos indivíduos protegidos, ante a inexistência de recursos públicos suficientes.

3. O ABSENTESEÍSMO ESTATAL E O PROTAGONISMO JUDICIAL

A questão que se apresenta em nossa realidade tem origem na chamada “síndrome de inefetividade constitucional”, visto que os direitos lá consagrados, principalmente os direitos sociais, necessitam, da atuação estatal, seja por meio de políticas públicas, seja na regulamentação legislativa, não bastando para sua existência, sua previsão em um documento solene, tão somente.
Como explica Norberto Bobbio, trata-se de uma característica essencial dos direitos sociais, na medida em que não basta consagrá-los, para existirem, é preciso sua realização. Assim, devem ser levadas em consideração, condições objetivas próprias, externas ao campo jurídico[16].
Nesse sentido, Guilherme Amorim Campos da Silva[17] é enfático, ao explicar que:

No âmbito do constitucionalismo contemporâneo, a realização dos direitos humanos e dos direitos sociais constitui-se em condição legitimadora de qualquer ordem jurídica estabelecida. (...) A função dos sistemas de direito, na realidade contemporânea, deve ser orientada instrumentalmente para a tradução de princípios e previsões normativas em ações públicas e judiciais vertidas para sua realização. Caracterizando uma concepção antropocêntrica das Constituições modernas e contemporâneas, Häberle identifica nova estrutura de funções e competências estatais, que se encontram a serviço do ser humano.

Portanto, quanto aos direitos de segunda geração, os mesmos representam uma etapa de evolução na proteção da dignidade da pessoa humana. Assim, uma vez conquistados os direitos de primeira geração, o homem passa a luta pelos direitos de segunda geração; redundando no surgimento do denominado Estado Social.
Tem, de uma maneira abrangente, como essência, a preocupação com as necessidades humanas. E nesse viés, buscam a satisfação das necessidades primordiais das pessoas, a fim de que se possa alcançar patamares mínimos de existência, desfraldando, em sua marcha, a bandeira da dignidade da pessoa humana, com intento de buscar uma significação maior à vida, que uma sucessão de misérias. E; no presente contexto, portanto, ao Estado não é dado se abster. Ao revés, deverá agir, atuando no sentido de se buscar a superação das carências individuais e sociais, por princípio institucional. Nesse sentido, Gilmar Ferreira Mendes[18] explica que:

Vinculado à concepção de que ao Estado incumbe, além da não intervenção na esfera da liberdade pessoal dos indivíduos, garantida pelos direitos de defesa, a tarefa de colocar à disposição os meios matérias e implementar as condições fáticas que possibilitem efetivo exercício das liberdades fundamentais, os direitos fundamentais a prestações objetivam, em última análise, a garantia não apenas da liberdade-autonomia (liberdade perante o Estado), mas também da liberdade por intermédio do Estado, partindo da premissa de que o indivíduo, no que concerne à conquista e manutenção de sua liberdade, depende em muito de uma postura ativa dos poderes públicos.

Por tal razão, os direitos de segunda geração são denominados direitos positivos. Possuem, também, a denominação de “direitos de crença”, na medida em que trazem em seu bojo, a esperança de uma participação ativa do Estado.

E nesse jaez, o artigo 5º, § 1º[19] busca apregoar força dirigente à Constituição, além do caráter vinculante dos direitos e garantias fundamentais, irradiados aos Estados e reciprocamente a todos os cidadãos (considerados em uma acepção ampla).
Assim, com o advento dos direitos sociais, ante o imobilismo dos Poderes Legislativo e Executivo, cada qual em seu mister, concebe-se a figura de um protagonismo judicial, esse consentâneo com o paradigma afeto a uma justiça material.
Desse modo, tem-se que o protagonismo judicial tem a sua mais destacada fronteira pousada na garantia judicial da força normativa da Constituição; visto que é grave a omissão legislativa que a violenta, não fazendo aquilo que fora constitucionalmente determinado. Tal situação faz nascer a chamada omissão inconstitucional.
Nesse sentido, Walter Claudius Rothenburg[20] explica que:

Verifica-se desde logo que a tarefa de implementação dos direitos fundamentais propostos pelo constituinte já não é deferida com prioridade absoluta ao legislador. A implementação deles está ao alcance de qualquer sujeito e encontra no próprio quadro constitucional positivo instrumentos de viabilização (como mandado de injunção).
Além desse alargamento da possibilidade de realização dos direitos fundamentais, a aplicabilidade direta – com seu corolário, o princípio da máxima efetividade – autoriza defender o deslocamento de competência, com a mudança de titulares, no intuito de obter-se uma maior implementação dos ditos direitos.

Portanto, a apreciação dessas omissões se desenvolve judicialmente, a partir não de um modo meramente mecanicista, eivada de absoluta passividade perante o sentido literal dos textos constitucionais, mas por meio de uma atividade criativa.
Tal atuação judicial supletiva justifica-se, na medida em que, sendo as regras e os preceitos constitucionais dotados de superioridade normativa diante da legislação infraconstitucional, é dever do legislador infraconstitucional a concretização, na máxima medida possível, dos conteúdos constitucionais que reclamam uma atuação legislativa para sua concretização.
Dentro desse contexto, evidencia-se, como ideal de uma época de pós-positivismo e concretização judicial da principiologia constitucional, a presença, cada vez mais constante, de uma atitude criadora do Juiz, em antítese à omissão legislativa, em sua missão judicante.

4. CONCLUSÃO

À guiza de conclusão, há que se ponderar que o Poder Judiciário, na prestação judicial não deve pretender substituir os Poderes Executivo ou Legislativo, quanto a decisão sobre a característica a ser dada ao Estado, visto que a mesma tem como fonte a Constituição Federal, em sua arquitetura funcional própria.
De outra parte, o Poder Judiciário não pode se abster de cumprir a sua missão constitucional, sua razão de ser, portanto. Assistir passivo a subversão dos valores, por quem deveria acolhê-los, fazendo-se pouco da dignidade humana, a partir da preponderância dos imperativos econômicos, é contra-senso de tudo o que se pode denominar de Justiça.
Assim, se ao Poder Judiciário é vedado se arvorar como legislador e administrador, também lhe é vedado ignorar seu mister de realizar a justiça, por imperativo ético de sua razão de existir.
Portanto, não lhe é dado definir políticas públicas, ante a ausência de mandados constitucionais; no entanto lhe é determinado fazer valer a dignidade da pessoa humana do imperativo categórico do Estado.
Assim, ao Poder Judiciário cabe atuar objetivamente na concretização dos preceitos constitucionais; quando, pela omissão legislativa – que aqui focamos, na regulamentação das normas constitucionais de eficácia limitada, ou mesmo, pela omissão da função executiva, na consecução de políticas estatais, obsta a efetivação dos direitos fundamentais, notadamente os direitos sociais.
Tal atuação, nominada de protagonismo judicial, em uma de suas derivações, fundamenta-se na necessidade de se concretizar a constituição programática, de modo a que, a partir de uma justificação razoável e embasamento normativo, o sujeito constitucional, originariamente previsto para aquela missão constitucional, seja desincumbindo, e substituído por outro sujeito, mesmo que sob o risco da perda de legitimidade.
Portanto, o protagonismo judicial trata-se de uma solução possível, extrema e excepcional, frente à “síndrome de inefetividade constitucional”, que por conta do absenteísmo estatal põe em xeque o projeto social do Estado Constitucional de Direito.

REFERÊNCIAS

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[1] BRITO apud MEIRELLES, 2008, p. 11.
[2] CANOTILHO apud SANTOS, 2004, p. 63.
[3] STRECK, 2009, p. 25.
[4] AGRA, 2008 p. 31.
[5] MIRANDA, 2007, p. 24.
[6] MELLO, 2004, p.43.
[7] BARCELLOS, 2002, p.304.
[8] DWORKIN, 2002, p. 349.
[9] DWORKIN, 2005, p. IX.
[10] ALEXY, 2008, p. 90.
[11] ÁVILA, 2009, p. 121.
[12] SARLET, 2007, pp. 117 e 118.
[13] BARCELLOS, 2002, p. 304.
[14] BARCELLOS, 2002, p. 305.
[15] SARLET, 2007, pp. 388 e 389.
[16] BOBBIO, 1992, p. 44.
[17] SILVA, 2004, p. 39.
[18] MENDES, 2007, p. 06.
[19] BRASIL, 1988.
[20] ROTHENBURG, 2005, p. 73.







Comentários

  1. Estou cursando o primeiro ano de direito
    e muito antes ja entendia o que é viver
    uma náusea petrificante, a moda de Kafka.

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  2. Compreendo perfeitamente... A metafórica metamorfose kafkaniana...Visceralmente dolorosa e ordinariamente comum...

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