forum non conveniens
Editorial 67
Há situações em que existem vários
foros em princípio competentes para o conhecimento e julgamento de uma demanda;
são os foros concorrentes.
Em certos casos, há duas ou três
opções (art. 95, segunda parte, do CPC; art. 100, par. ún., CPC; art. 475-P,
par. ún., CPC); em outros, o número aumenta consideravelmente, como nos casos
das ações coletivas ressarcitórias em razão de dano nacional (qualquer capital
de Estado-membro e no Distrito Federal, art. 93, II, CDC), litígios
internacionais (vários Estados igualmente competentes) e comunitários (vários
países de uma determinada comunidade internacional).
O fenômeno é freqüente em estados
federais, como o estadunidense e o brasileiro, e na Comunidade Européia.
O autor, diante dessas opções,
exercita aquilo que já se denominou como forum shopping: a escolha do foro pelo
demandante. Escolher o foro dentre aqueles em tese competentes é direito potestativo
do autor. Há várias razões para a escolha, mas a principal parece ser a
existência de diferença nas regras de direito material ou processual entre os
diversos foros, fato muito freqüente nos casos de competência internacional e
em federações como a estadunidense, em que a competência legislativa do
Estado-membro é bem extensa.
É absolutamente natural que, havendo
vários foros competentes, o autor escolha aquele que acredita ser o mais
favorável aos seus interesses. É do jogo, sem dúvida. O problema é conciliar o
exercício desse direito potestativo com a proteção da boa-fé. Essa escolha não
pode ficar imune à vedação ao abuso do direito, que é exatamente o exercício do
direito contrário à boa-fé.
É certo que vige no direito
processual o princípio da boa-fé, que torna ilícito o abuso do direito. Também
é certo que o devido processo legal impõe um processo adequado, que, dentre
outros atributos, é aquele que se desenvolve perante um juízo adequadamente
competente. A exigência de uma competência adequada é um dos corolários dos
princípios do devido processo legal, da adequação e da boa-fé. Pode-se
inclusive falar em um princípio da competência adequada.
A questão que se apresenta, pois, é a
seguinte: de que modo esses princípios incidem no forum shopping, para impedir
o abuso do demandante na escolha de um foro que, embora em tese competente, se
revele no caso como uma técnica de dificultar a defesa do demandando ou impedir
o bom prosseguimento do processo, sem que disso o autor possa auferir qualquer
espécie de justa vantagem?.
Para garantir a efetivação de todos
esses princípios, embora sem sistematização e com uma fundamentação difusa,
surgiu na Escócia uma doutrina que serviu como freio jurisprudencial a essas
escolhas abusivas. A ela deu-se o nome de forum non conveniens.
Com a inserção dessa regra o próprio
juiz da causa, no controle de sua competência, utilizando a regra da
Kompetenzkompetenz (o juiz é competente para controlar a sua própria
competência), já aceito pelo ordenamento nacional, evitaria julgar causas para
as quais não fosse o juízo mais adequado, quer em razão do direito ou dos fatos
debatidos (p. ex.: extensão e proximidade com o ilícito), quer em razão das
dificuldades de defesa do réu.
A
aplicação no Brasil da doutrina do foro não conveniente é plenamente possível,
a partir da concretização do direito fundamental a um processo adequado e leal.
Sucede que há decisão da 3ª T. do
STJ, em que se afirmou que, apesar de sua coerente formulação em países
estrangeiros, os princípios (sic) do forum shopping e do forum non conveniens
não encontram respaldo nas regras processuais brasileiras (MC n. 15.398-RJ,
rel. Mina. Nancy Andrighi, j. em 02.04.2009, publicado no DJe em 23.04.2009). O
tema não foi examinado com a profundidade devida no mencionado acórdão. Há,
inclusive, erro técnico: não se trata de princípios. Fórum shopping é um fato da vida; forum non
conveniens é uma teoria. O princípio em questão é a boa-fé processual (ou, mais amplamente, o
devido processo legal). Certamente, o assunto voltará a ser examinado
pelo STJ em outros termos.
É certo que essa doutrina confere uma
elasticidade na aplicação das regras de competência, que poderão ser
controladas caso a caso, a partir da concretização desses direitos fundamentais.
A cláusula geral de
controle da adequação da competência, como toda cláusula geral, permite certa
discricionariedade judicial, que não é nova em nosso sistema jurídico, já
bastante aquinhoado com textos normativos deste tipo. A exigência de adequada
fundamentação é a forma de resolver esse conflito entre segurança jurídica
(regras apriorísticas de competência) e a justiça do caso concreto (impedir o
abuso do direito).
A
existência de foros concorrentes significa que todos eles são igualmente
competentes para, em tese, julgar um determinado tipo de demanda. Essa
circunstância, porém, não impede que se controle in concreto o exercício do
direito de escolha do foro que, se se revelar abusivo, deverá ser rechaçado
pelo órgão jurisdicional, que sempre tem a competência de julgar a própria
competência.
Autor: Fredie Didier Jr (destaques nossos)
Comentários
Postar um comentário