A LIBERDADE DE PENSAMENTO:Razões Para Sua Defesa


 

Alexandre Gazetta Simões[1]

 

O problema fundamental em relação aos direitos do homem, hoje, não é o de justificá-los, mas o de protegê-los. Trata-se de um problema não filosófico, mas político "  Norberto Bobbio

 
 

O direito de falar e de calar, quando se pensa em liberdade de expressão (art. 5º, IV da Constituição Federal) não deve ser dado a ninguém, muito menos ao Estado.

A par disso tudo, a restrição ao direito de se expressar livremente representa um exercício de violência, por parte de quem promove a censura, seja o Estado ou o próximo, na medida em que viola a abrangência totalizante da dignidade da pessoa humana, visto que a liberdade propugna pela auto-realização da pessoa humana (MENDES; COELHO; BRANCO, 2008, p. 359).

Se de um lado existe o Poder Público, com todos os instrumentos institucionais aptos a conter a expressão do livre pensamento; e de outra ponta, a abstração constitucionalmente consagrada no texto constitucional, é necessário a prática democrática constante e efetiva, por todos os canais historicamente e tecnologicamente construídos, de modo a concretizar essa abstração praticamente inacessível a uma definição instantânea em um momento de necessidade inusitado.

O projeto democrático inacabado, fundado em um liberalismo de superfície, que resultou no lamentável mal entendido de nossa democracia, que nos fala Sérgio Buarque de Holanda (1995, passim), é o cerne em que se insere tal discussão, apesar de desbordar, e muito, dos limites desse artigo.

Assim, a Constituição Federal é, em última análise, uma lei. A mais importante delas. Ao menos é possível tê-la em mente como tal. A par dessas considerações, quer se apontar que com a implantação do Estado Constitucional Democrático de Direito, todas as normas constitucionais passaram a ser dotadas de supremacia jurídica, providas, que são, de eficácia jurídica; notadamente, as normas definidoras de direito, dotadas de aplicação imediata, como se pode depreender do artigo 5º, § 1º da Constituição Federal[2].

Dessa forma, a Constituição Federal, ao dedilhar-se suas páginas ou examinar-lhe os artigos[3], vê-se um conjunto de temas que foram lá inseridos de modo a se poder concluir, sem sombra de dúvida tratar-se, a liberdade de expressão, de um direito fundamental.

Portanto, ao se considerar a Constituição Federal como lei, a mesma como espécie do gênero norma jurídica é dotada de imperatividade. E, tal constatação faz concluir que o comando que emana da Constituição Federal corresponde a uma prescrição e que o seu descumprimento, por consequência, implica no acionamento de um mecanismo de coação.

Tal acepção é apresentada por Luís Roberto Barroso (p. 76, 2006) nos seguintes termos:

 

As normas constitucionais, como espécies do gênero normas jurídicas, conservam os atributos essenciais destas, dentre os quais a imperatividade. De regra, como qualquer outra norma, elas contêm um mandamento, uma prescrição, uma ordem, com força jurídica e não apenas moral. Logo, a sua inobservância há de deflagrar um mecanismo próprio de coação, de cumprimento forçado, apto a garantir-lhe a imperatividade, inclusive pelo estabelecimento das conseqüências de insubmissão ao seu comando.

 

 De outra parte, o Estado representa, na acepção de mundo contemporâneo vivenciada pela humanidade, a organização fundamental em que o homem se situa, possibilitando sua inserção social.

A origem do Estado está adstrita à natureza social do homem. Desse modo, a partir do elemento associativo do gênero humano, o mesmo se agrupa em várias organizações sociais. Por sua vez, essas organizações sociais se originam a partir das afinidades entre os vários grupos humanos, exemplificativamente, nas áreas cultural, econômica, religiosa, esportiva e política.

E, justamente, a partir desses núcleos populacionais, tem-se o surgimento da figura do Estado, representando como a mais importante organização social.

Tal importância é evidenciada por Darcy Azambuja (AZAMBUJA, 2011, p. 20), o qual pondera que:

 

Com exceção da família, a que, pelo nascimento, o homem forçosamente pertence, mas de cuja tutela se liberta com a sua maioridade, em todas as outras sociedades ele ingressa voluntariamente e delas se retira quando quer, sem que ninguém possa obrigá-lo a permanecer. Da tutela do Estado o homem não se emancipa jamais. O Estado o envolve na teia de laços inflexíveis, que começam antes de seu nascimento, com a proteção dos direitos do nascituro, e se prolongam até depois da morte, na execução de suas últimas vontades. No mundo moderno, o Estado é a mais formidável das organizações.

 

Desse modo, a conformação do Estado que temos vivenciado em nossa era, projeto evolutivo do chamado Estado Moderno; trata-se de um tipo de sociedade política que teve origem nos séculos XVI e XVII. Sua gênese ocorre com a centralização do poder.

Já o Estado liberal está adstrito ao liberalismo político e econômico, a partir dos séculos XVIII e XIX, notadamente no modelo estatal inglês, momento em que a ordem jurídica se volta para a proteção dos referidos direitos naturais do indivíduo.

Assim, o Estado apresenta-se como aparato fundamental que possibilita vida do homem social e mecanismo de justificação e promoção dos direitos humanos. Portanto, impensável o modelo de sociedade atual, sem a presença do Estado.

Dentro desse contexto, a liberdade de expressão é um direito contemporâneo ao surgimento do referido Estado Liberal, como parte de um projeto político libertário que emerge da Independência Americana e da Revolução Francesa, integrante do plexo dos direitos correspondentes aos direitos civis e políticos, tem como objetivo a inserção do indivíduo perante o Estado, a partir de sua afirmação, por meio de suas ideias.

O Estado deve garantir o exercício desse direito, portanto[4].

O indivíduo, nessa concepção de mundo, da qual pretendemos aderir, como demonstramos em nosso texto constitucional, é um sujeito ativo. Ele participa. Ele delineia os caminhos políticos a serem seguidos pelo Estado. O indivíduo apresenta, nessa perspectiva um status de participação.

A sujeição do indivíduo ao Estado ocorre, excepcionalmente, em um outro contexto e momento. Talvez, por exemplo, a sujeição do indivíduo às forças de segurança pública quando há crime de dano ao patrimônio público e particular, porque há a delimitação constitucional (legal) para tanto[5].

O compromisso com tal estado de coisas está lastreado na busca de uma nação com mentalidade de vanguarda, em que há espaço para todo o tipo de ideias. As ideias ruins e boas são criteriosamente selecionadas a partir do debate público[6]. Somente as melhores ideias sobrevivem, após serem seguidamente testadas, por meio de múltiplas visões de mundo, a partir de argumentações cada vez mais refinadas.

Tal ambiente de discussão somente é possível na ausência total de censura, sob a vigilância do Estado quanto à mínima violação de tal direito; e se dá por meio de opiniões que possam soar rudes, de mau gosto, idiotas ou ofender o senso comum[7].

Não há outra via possível, que não o debate livre de ideias, e daí, também a salvaguarda ao acesso à ampla informação de qualidade[8].

Portanto, da importância da liberdade de expressão depende a sobrevivência do Estado, porque gabarita o seu povo ao debate mundial, a partir da excelência de sua argumentação, o que somente pode ocorrer no livre câmbio de ideias.

 


REFERÊNCIAS.

 

AZAMBUJA, Darcy. Teoria Geral do Estado. 36ª ed. Rio de Janeiro: Editora Globo, 2011.

 

BOBBIO, Norberto. A Era dos Direitos. trad. de Carlos Nelson Coutinho, Rio de Janeiro: Campus, 1992.

 

BARROSO, Luís Roberto. O Direito Constitucional e a Efetividade de suas Normas. 8ª ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2006.

 

DWORKIN, Ronald. A Virtude Soberana. São Paulo: Martins Fontes, 2005.

 

FERNANDES. Bernardo Gonçalves. Curso de Direito Constitucional. 4ª ed. Salvador: Juspodivm, 2012.

 

HOLANDA. Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. Cia das Letras.  1995.

 

MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. 2ª ed. São Paulo: Saraiva, 2008.

 



[1] Mestre em Teoria do Direito e do Estado pelo Centro Universitário Eurípedes de Marília (UNIVEM); Pós-graduado, com Especialização em Gestão de Cidades (UNOPEC); Direito Constitucional (UNISUL); Direito Constitucional (FAESO); Direito Civil e Processo Civil (FACULDADE MARECHAL RONDON); Direito Tributário (UNAMA), Graduado em Direito (ITE-BAURU); Analista Judiciário Federal – TRF3; Professor de graduação de Direito na Associação Educacional do Vale do Jurumirim (EDUVALE AVARÉ). Membro do Conselho Editorial da Revista de Direito do Instituto Palatino. Membro do Conselho Editorial da Revista Acadêmica de Ciências Jurídicas da Faculdade Eduvale Avaré - Ethos Jus. Co-autor da obra “Ativismo Judicial – Paradigmas Atuais” (2011) Letras Jurídicas. Membro dos Grupos de Pesquisa: “A intervenção do Estado na vida do indivíduo” e “GEP – Grupo de Estudos, Pesquisas, Integração e Práticas interativas”. alexandregazetta@yahoo.com.br.
[2]  Art. 5º. [...] § 1º - As normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata
[3] Art. 5º. Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: [...] IV – é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato; [...] V - é livre a expressão da atividade intelectual, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença; X – são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação; [...] XLI – a lei punirá qualquer discriminação atentatória dos direitos e liberdade fundamentais;
Art. 220. A manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma, processo ou veículo não sofrerão qualquer restrição, observado o disposto nesta Constituição.
§ 1º - Nenhuma lei conterá dispositivo que possa constituir embaraço à plena liberdade de informação jornalística em qualquer veículo de comunicação social, observado o disposto no art. 5º, IV, V, X, XIII e XIV.
§ 2º - É vedada toda e qualquer censura de natureza política, ideológica e artística.
§ 3º - Compete à lei federal:
I - regular as diversões e espetáculos públicos, cabendo ao Poder Público informar sobre a natureza deles, as faixas etárias a que não se recomendem, locais e horários em que sua apresentação se mostre inadequada;
II - estabelecer os meios legais que garantam à pessoa e à família a possibilidade de se defenderem de programas ou programações de rádio e televisão que contrariem o disposto no art. 221, bem como da propaganda de produtos, práticas e serviços que possam ser nocivos à saúde e ao meio ambiente.
§ 4º - A propaganda comercial de tabaco, bebidas alcoólicas, agrotóxicos, medicamentos e terapias estará sujeita a restrições legais, nos termos do inciso II do parágrafo anterior, e conterá, sempre que necessário, advertência sobre os malefícios decorrentes de seu uso.
§ 5º - Os meios de comunicação social não podem, direta ou indiretamente, ser objeto de monopólio ou oligopólio.
§ 6º - A publicação de veículo impresso de comunicação independe de licença de autoridade
[4] ADPF 130, Relator(a): Min. CARLOS BRITTO, Tribunal Pleno, julgado em 30/04/2009, DJe-208 DIVULG 05-11-2009 PUBLIC 06-11-2009 EMENT VOL-02381-01 PP-00001 RTJ VOL-00213- PP-00020.
[5] Assim, tais direitos visam à garantia de um espaço de liberdade por parte dos cidadãos a partir de uma limitação do poder estatal. Tais direitos são, portanto, direitos subjetivos tanto para se evitar a interferência indevida (função preventiva), quanto para eliminar agressões que esteja sofrendo no plano da autonomia priva ( função corretiva). FERNANDES. Bernardo Gonçalves. Curso de Direito Constitucional. 4ª ed. Salvador: Juspodivm, 2012, p. 322.
[6] As condições como esse debate irá ocorrer e a temática do auditório universal e da razão comunicativa não é esquecida, mas pertence a outro contexto, onde nos preocupamos com a igualdade de condições. Aliás essa discussão também é apresentada por Ronald Dworkin de forma enfática, ao propugnar que: “Podemos dar as costas à igualdade? Nenhum governo é legítimo a menos que demonstre igual consideração pelo destino de todos os cidadãos sobre os quais afirme seu domínio e aos quais reivindique fidelidade. A consideração igualitária é a virtude soberana da comunidade política – sem ela o governo não passa de tirania – e, quanto as riquezas de nações muito prósperas, então sua igual consideração é suspeita, pois a distribuição das riquezas é produto de uma ordem jurídica: a riqueza do cidadão depende muito das leis promulgadas em sua comunidade – não só as leis que governam a propriedade, o roubo, os contratos e os delitos, mas suas leis de previdência social, fiscais, de direitos políticos, de regulamentação ambiental e de praticamente tudo o mais”. (DWORKIN, 2005, p. IX.).
[7] Liberdades fundamentais e “Marcha da Maconha” - 1
Por entender que o exercício dos direitos fundamentais de reunião e de livre manifestação do pensamento devem ser garantidos a todas as pessoas, o Plenário julgou procedente pedido formulado em ação de descumprimento de preceito fundamental para dar, ao art. 287 do CP, com efeito vinculante, interpretação conforme a Constituição, de forma a excluir qualquer exegese que possa ensejar a criminalização da defesa da legalização das drogas, ou de qualquer substância entorpecente específica, inclusive através de manifestações e eventos públicos. Preliminarmente, rejeitou-se pleito suscitado pela Presidência da República e pela Advocacia-Geral da União no sentido do não-conhecimento da ação, visto que, conforme sustentado, a via eleita não seria adequada para se deliberar sobre a interpretação conforme. Alegava-se, no ponto, que a linha tênue entre o tipo penal e a liberdade de expressão só seria verificável no caso concreto. Aduziu-se que se trataria de argüição autônoma, cujos pressupostos de admissibilidade estariam presentes. Salientou-se a observância, na espécie, do princípio da subsidiariedade. Ocorre que a regra penal em comento teria caráter pré-constitucional e, portanto, não poderia constituir objeto de controle abstrato mediante ações diretas, de acordo com a jurisprudência da Corte. Assim, não haveria outro modo eficaz de se sanar a lesividade argüida, senão pelo meio adotado. Enfatizou-se a multiplicidade de interpretações às quais a norma penal em questão estaria submetida, consubstanciadas em decisões a permitir e a não pemitir a denominada “Marcha da Maconha” por todo o país. Ressaltou-se existirem graves conseqüências resultantes da censura à liberdade de expressão e de reunião, realizada por agentes estatais em cumprimento de ordens emanadas do Judiciário. Frisou-se que, diante do quadro de incertezas hermenêuticas em torno da aludida norma, a revelar efetiva e relevante controvérsia constitucional, os cidadãos estariam preocupados em externar, de modo livre e responsável, as convicções que desejariam transmitir à coletividade por meio da pacífica utilização dos espaços públicos.
ADPF 187/DF, rel. Min. Celso de Mello, 15.6.2011. (ADPF-187)
[8] A plenitude de formação da personalidade depende de que se disponha de meios para conhecer a realidade e as suas interpretações, e isso como pressuposto mesmo para que se possa participar de debates e para que se tomem decisões relevantes. O argumento humanista, assim, acentua a liberdade de expressão como corolário da dignidade da pessoa humana. (MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. 2ª ed. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 360.

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