WILLE ZUR MACHT

Em uma hipotética prova de uma hipotética faculdade, em um hipotético país, uma questão de direito Constitucional foi assinalada como errada no Gabarito. Tal questão apresentava o seguinte enunciado: “No fenômeno da recepção, só se analisa a compatibilidade material perante a nova Constituição”.
O professor indagado, para uns disse que sim, aos que insistiram no não. Para outros disse que não, aos que insistiram no sim.
Lembrou que o significado do que queria dizer somente poderia ser alcançado pelos alunos quando ele explicasse qual era o significado a ser alcançado.
O diálogo entre o professor e seus alunos não se deu textualmente dessa forma, apesar de poder, certamente, ter sido tão enfático quanto ao sentido atribuído ao texto em Alice (...) por Humpty Dumpty, em seu fundamento imediato de cala-boca epistêmico (CARROLL, 2009, pp. 114 e 115):

_Quando eu utilizo uma palavra - disse Humpty Dumpty, em um tom de sarcasmo -, ela significa exatamente o que quero que signifique, nem mais, nem menos.
_ Mas a questão é – disse Alice – se você tem o direito de fazer as palavras significarem para você coisas diferentes do que elas querem dizer para as outras pessoas!...
_A questão é – afirmou Humpty Dumpty – quem é que manda aqui. Só isso.

Justamente por tal impressão, um aluno desafiado verberava em direção ao professor, lançando suas adagas verbais em seus ouvidos.
Questionava, da parte da classe, em solitário salto mortal argumentativo, o que julgava ser uma arbitrariedade renhida, motivada por um erro de assimilação, refletida na didática do professor.
Circundado pelo silêncio atônito do mencionado professor (que não espera oposição) e de todos os demais alunos imantados pela força de argumentação do solitário falante, dizia, o aluno, que apesar de não se poder prescindir do aspecto lexical e etimológico, o sentido das palavras “só pode ser suficientemente esclarecido no contexto em que são utilizados” (GOMES, 2011, p. 47).
Aliás, dizia assim, como explicava Carlos Maximiliano (1996, p.9):

Interpretar é explicar, esclarecer, dar o significado de vocábulo, atitude ou gesto; reproduzir por outras palavras um pensamento exteriorizado; mostrar o sentido verdadeiro de uma expressão; extrair, de frase, sentença ou norma, tudo o que na mesma se contém.

Mas, de sua parte, o professor também não cedia. Tinha convicção do que dizia, e sua autoridade estava abalada. Assim, argumentou,: “a interpretação do Direito, como nos adverte Eros Roberto Grau (2009, p.38) está muito ligado à prudência (phrónesis aristotélica), também chamado de saber prático, portanto, o sentido originalmente pretendido, apesar da pretensa redação dúbia é perfeitamente defensável, considerando que os elementos compatibilidade material e formal foram enfatizados em aula efusivamente, enquanto os demais requisitos, a necessidade de vigência no momento da nova Constituição, fora dado por evidente, e a não declaração de inconstitucionalidade não fora tocada de perto, visto que existe uma polêmica em relação a tal teoria pelo STF, preferindo, esse, adotar a teoria da revogação e não da inconstitucionalidade superveniente, ainda mais considerando como parâmetro a Constituição sob cuja norma fora editada e a questão apontava para a Constituição posterior”.
“Nesse sentido, ainda”, prosseguia, o lente, agora já mais crente do acerto, do que antes lhe parecia poder estar errado; aduzindo que: “a conformação das provas (como instrumentos de aprendizagem) sempre levou em conta, assim como o “ordenamento jurídico é formado e conformado pela realidade” (GRAU, 2009, 79), as admoestações e ensinamentos pretendidos em sala de aula, daí a necessidade da phrónesis aristotélica juntamente com a dogmática (o estudo da doutrina); senão todas as questões poderiam ser passíveis de questionamento, visto que para toda a tese existe uma antítese, que invariavelmente, redunda numa síntese, por ser esse o caminho natural do conhecimento científico”.
De sua parte, o aluno intrépido, caminhando pela corda bamba, tendo abaixo o precipício da antipatia do professor antes das provas finais; prosseguia, em mais uma saraivada argumentativa, a plenos pulmões. Assim, dizia: “‘pode haver, a partir do ser-o-aí, nenhuma possibilidade de entendimento e abertura para o Ser que não seja o tempo, tematizado com base na ex-sistência do ser-o-aí’ (GIACCOIA, 2013, p. 88). Portanto, a partícula ‘só’ descontextualizada perde-se na vagueza das frases soltas do seu power point”.
O professor gostava de ler power point em sala de aula, método didático que acreditava ser o mais adequado a uma classe de Direito, para que todos, inclusive ele, pudessem ver o conteúdo que seria ministrado naqueles dias de trovão, evitando lapsos inoportunos de memória; guiando-os, todos, em uma trilha certeira de argumentos imantados pelos quadros digitais projetados na parede. Porque toda compreensão possível do ser - o que é a ontologia do fenômeno da Recepção sob a visão desse que vos escreve -  “é uma compreensão temporal” (GIACCOIA, 2013, p. 88), cercada de power points por todos os lados, para o professor.
Voltando ao quadro, encorajado por sua fala acessível a poucos, prosseguia, o versado aluno: “portanto, somente é possível conjugar o que está (pressu)posto no seu power point, com o que foi assimilado em sala de aula, locus próprio onde perfil(h)amos suas ideias, para depois serem adequadamente manejadas, sob nossa ótica, com os voos de pensamento solitários- individuais. A partir do conhecimento que se pretendia ser transmitido pretender tê-lo apreendido. Todo esse processo deveria ter sido resgatado no processo de confecção da questão perguntada ”. Deixou claro o aluno, agora já achando que esse voo mortal epistemológico custou-lhe o apoio dos colegas, visto que para o professor já era considerado um homem morto, sem qualquer epistemo(lógica)..
Mas ainda não bastava, respirou fundo, o aluno solitário em seu voo epistemológico às cegas. Olhou à volta, e acima de qualquer impressão obtusa da parte de uma colega. Prosseguia: “de outra parte, a doutrina também se apresenta voltada a cindir os elementos necessários à verificação do fenômeno da recepção, levando-se em consideração os parâmetros norteados pela nova Constituição (e aí focando no aspecto da compatibilidade material) e pela Constituição em que a norma fora editada. Tal ponderação, aliás, faz todo sentido, na medida em que a recepção revoga ou conserva o Direito anterior à nova Constituição, por imperativo de ordem prática. Assim, Dirley da Cunha Júnior (2010, p. 259) é enfático ao decretar que o direito infraconstitucional será ‘recepcionado quando em conformidade material com a nova Constituição, recebendo dela o seu novo fundamento de validade’. Ou mesmo, Luiz Alberto David Araújo e Vital Serrano Nunes Júnior, que ao tratarem do fenômeno da recepção explicavam tratar-se de ‘processo de ressignificação do direito infraconstitucional compatível com a nova Constituição’ (2012, p. 48)”.
Espira, inspira. O professor recomeça a desconstrução da argumentação discente: “e é justamente desse caráter enfático que se evidencia a Teoria da Contemporaneidade, a partir da qual a lei é constitucional perante o paradigma em que foi produzida, portanto perante a Constituição anterior. Por tal razão, dizíamos que em relação à nova Constituição a constitucionalidade era pressuposta. Por conta disso, aliás, também, em relação à nova Constituição é que existe a possibilidade da incompatibilidade formal na produção da norma sem que essa norma seja declarada inconstitucional, visto que o paradigma é a Constituição anterior. Em relação à Constituição em que a norma foi editada, a compatibilidade, portanto, deverá ser formal e material. Portanto, aí reside a significação de nosso discurso, quando dizíamos que a constitucionalidade era pressuposta em relação à nova Constituição. Outra derivação, ainda nesse viés, tratar-se-á da constatação de que se ‘o direito pré-constitucional não se harmonizar materialmente com a nova Constituição, não será recepcionado por esta, mas sim revogado’ (JÚNIOR, 2010, p. 259). Tal é o posicionamento do Supremo Tribunal Federal, o qual não admitindo a Teoria da Inconstitucionalidade Superveniente, entende pela Revogação da Lei (ADIQO-7/DF – Min. Celso de Mello, DJ 04.09.1992, p. 14087, Ement. V 01674-01, p 01).
Pausa. Prossegue o professor: “se ‘a não recepção de uma norma infraconstitucional pela vigente Constituição traduz hipótese de revogação hierárquica, regrada pelo chamado direito intertemporal (lei posterior revoga a anterior com ela incompatível)’ (ARAÚJO; JÚNIOR, 2012, P. 48); não poderá soar estranho dizer que a vigência da norma também é pressuposta, em relação à nova Constituição. Por todas essas razões, quando ‘diz-se que (...) se opera o fenômeno da recepção (...) corresponde a uma revalidação das normas que não desafiam, materialmente, a nova Constituição” (MENDES; COELHO; BRANCO, 2007, p. 203); quero dizer que se uma lei anterior à Constituição é com ela compatível no seu conteúdo, as mesmas continuam em vigor. Assim, quando do confronto da compatibilidade material da norma com a nova Constituição, que é justamente o momento apresentado na questão da prova, pode-se concluir que todos os demais requisitos apontados, quais sejam: compatibilidade formal e material com a Constituição em que a norma foi editada, sua constitucionalidade e sua vigência no momento da nova Constituição, já deverão ter sido superados, porque esses serão analisados em confronto com a Constituição anterior, por tal razão, quando leva-se em consideração a Constituição nova, tais requisitos são pressupostos (daí a significação da minha fala). Portanto, no fenômeno da recepção, só se analisa a compatibilidade material perante a nova Constituição, porque todos os demais requisitos apontados no meu power point já foram analisados perante a Constituição sob a qual a norma fora editada”.
Bate o sinal de saída. O resto é silêncio.


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