HÁ ALGUMA FILOSOFIA NO LATIDO DOS CACHORROS
Um
casal de cachorros dorme sob o telhado da entrada do portão social da casa rosa
e branca, do meio do quarteirão, desse bairro periférico, na cidade em que
resido.
Quando
chove os dois cachorros ficam entrelaçados. Quando faz sol, distantes um do
outro. Mas juntos estão sempre.
Domingo
à tarde, quase sempre é deserta a rua. Os dois estão sozinhos na calçada vazia
- observo. O sol é mortiço e anuncia a noite vaga que precede a segunda-feira.
Mas
nada sabem da segunda-feira, os cachorros ladinos. Sabem somente que nenhuma
viva alma virá à porta ou passará pelo calçamento, com algum resto de comida ou
sujeira comestível que valha.
Quem
tem mais sorte? Pensa o morador solitário da casa, que tem o portão habitado
pelos cachorros amantes.
Ensimesmado
pensa, o solitário morador, se a consciência da morte faz a vida melhor vivida?
Saberão os cachorros algo que diz respeito ao tempo morto do trabalho que não se
gosta, mas se precisa? Será que os cachorros além da dor da fome, sabem da dor
de dentro. A dor da alma? Sabem que tudo é angústia, quando se tem a consciência
do correr dos dias em direção ao próprio fim terreno?
Os
cachorros não se importam com nada disso. Dormem quase sempre puros. Não
parecem ter pesadelos. Dormem nus em pelos. Despojados de si mesmos. Sob o
cimento da calçada, não se importam de fazer lá sua cama, quando a noite é
fresca e seca.
Tem
fome e sede, os cachorros, por supuesto! Mas nada que alguém que
passe a esmo, não possa suprir. Um pedaço de carne mofada, arroz velho, feijão estragado,
ou água suja. É o que basta. O morador solitário não pode viver com tão pouco. O
pouco que precisa é o muito que os cachorros não pedem, quando abanam os rabos,
ao abrir do portão, quase sempre na hora matinal em aquele vai ao trabalho,
durante os dias cheios da semana.
Os
cachorros moram na rua e a rua acolhe os cachorros. O mundo dos cachorros é a
rua onde moro. E o morador solitário trabalha todos os dias cheios da semana.
Os cachorros não sabem o que é trabalho. Simplesmente vivem os dias, que para
eles não são cheios ou vazios. São tempos de luz entremeados pela escuridão,
quando eles dormem.
Tem
consciência das horas, os cachorros ladinos, pela intermitência da fome e da
saciedade, conforme a sorte lhes abre ou fecha a mão, ao sabor da generosidade humana
alheia ao universo canino.
Mas
hoje ainda é domingo. Não vejo o morador solitário. Não vejo viva alma na rua
deserta. Hoje a tarde é vazia. A rua é vazia. Os estômagos dos cachorros estão,
por certo, ocos. Mas eles sentem resignadamente a dor da fome, e não tem qualquer
dor na alma que possa lhes tirar o sono que embala os dois serezinhos, na
crueza do cimento da calçada, em frente ao portão da casa rosa e branca do
morador solitário, que por sofrer de dores crônicas da alma, não dorme, apesar
de ter o estômago todo preenchido.
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