(AINDA) LEMBRO DE MARIO QUINTANA
Observo que as casas
nesse bairro têm janelas sem cortinas. Janelas de vidro que desnudam a vida de
seus habitantes. São toscas casas dos simples de coração. Eles, os homens e
algumas mulheres, regressam de seus afazeres. Fatigados pelo trabalho. São
acolhidos pelas casas abertas à sua presença. Nesse momento, eu os invejo.
Tanto de mim queria ser um deles. Imersos na absoluta simplicidade das coisas
que se repetem, sem maior profundidade.
Faz um tempo que não
venho aqui. Antes, eu costumava saber o caminho certo. Quase não sofria.
Algumas memórias de amor mal curadas. Mas, era só. Agora é diferente. O sentido
profundo do sofrimento faz-me caminhar a esmo. Mesmo cansado. Perdido. Não paro
de andar.
É sempre noitinha
quando percebo esse ponto do caminho. Não totalmente escuro está ainda o
semblante. Mas o dia já não está aqui. Isso é claro, à minha percepção. Quando
se está aqui fora, a essa hora da tarde, a noite sempre é mais escura. -Mas, é
só por esse momento. Eu murmuro, baixinho, para mim, de mim mesmo.
Outro dia achei alguns
poemas de Mario Quintana. Já me disseram da tristeza difusa. Nome estranho para
uma sensação de percepção da dor (alheia), que se apossa de alguns (muitos)
momentos do meu dia. Mesmo que o sol esteja a pino. Tem uma poesia que fala dos
perigos do relógio. Esse animal feroz, segundo o poeta, que já lhe tomou três
gerações de sua família. A mim, já me tomou duas avós, dois avôs, um pai, e uma
tia (que eu me lembre).
Tem um outro poema que
fala do primeiro assassinato da sua alma. Disse, o poeta, que perdeu o jeito
que tinha antes de sorrir. E que de tempos em tempos, outro crime era
praticado, e que sempre levavam algo de seu ser. Mas, disse também de se
recusar a entregar o fogo sagrado, mesmo sendo um cadáver iluminado.
Sei que Fernando Pessoa
fala de um cadáver adiado. Nessa hora da noite, não sei se gostaria de me lembrar
de um cadáver: adiado ou atrasado. Gostei da parte do fogo sagrado. Também já
me tomaram muito. Mas, não o fogo sagrado...
Até lembro da primeira
vez, acho... De novo, o termo: hipótese diagnóstica: tristeza difusa. Era eu,
ensinando ao vigário a rezar a missa.
A primeira vez (...) em
Goiânia. Perdido numa periferia, cheia dessas casas de muros baixos e
interiores aparentes. Com crianças e mulheres (suas mães), de mãos dadas, pelas
calçadas, daquelas ruas. Horas, em coletivos meio vazios, de um domingo de
tarde. Lembrei até de Albert Camus. Aquela cena da sacada do prédio, em “O
Estrangeiro”. Digo, lembro agora. Naquela época, lia muito Direito
Constitucional e pouca literatura francesa.
Acredito que tenha sido
naquela primeira vez, que reparei nas casas de muro baixo e de janelas sem
cortinas. Eram as pessoas que voltavam a seus lares, vindo de seus afazeres,
alguns a trabalho, outros a lazer, naquela tarde vazia de um domingo em Goiânia.
Recordação, que até agora acreditava já perdida em uma lembrança difusa.
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